19 Mai 2021
Pablo Stefanoni é doutor em História pela Universidade de Buenos Aires e chefe de redação da revista Nueva Sociedad. Também é pesquisador no Centro de Documentação e Investigação da Cultura de Esquerda (CeDInCI) e professor na Universidade Nacional de San Martín.
Publicou vários trabalhos sobre a história da esquerda, entre eles o livro Los inconformistas del Centenario: Intelectuales, socialismo y nación en una Bolivia en crisis (1925-1939) e, em coautoria com Martín Baña, Todo lo que necesitas saber sobre la Revolución Rusa, entre outros.
Seu último livro, recém-publicado, é La rebeldía se volvió de derecha? (Siglo Veintiuno Editores, 2021). Foi correspondente do jornal Página/12 e Clarín, em La Paz (Bolívia), e dirigiu a edição boliviana de Le Monde Diplomatique.
A entrevista é de Martín Massad, publicada por Rebelión, 15-05-2021. A tradução é do Cepat.
Como surge a ideia de seu último livro ‘La rebeldía se volvió derecha’?
Em geral, sempre escrevi sobre a esquerda. No entanto, nos últimos tempos, comecei a me interessar por alguns aspectos das direitas em escala global. Sobretudo, os aspectos mais transgressores das novas direitas alternativas que, com o triunfo de Donald Trump, alçaram grande voo no plano internacional.
De fato, seu discurso não tinha muito a ver com o clássico discurso da direita que conhecíamos, já que aparecia como antissistema, transgressor, capaz de atrair alguns jovens que se apresentam como de direita de forma muito mais explícita do que antes.
É claro, sempre houve direitas juvenis, mas me interessava aprofundar sobre o que estas direitas tinham de novo frente ao neoconservadorismo de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, dos anos 1980, ou o neoliberalismo, dos anos 1990. Neste ponto, então, notei que havia certas diferenças que valia a pena indagar.
Em seu entender, a rebeldia da nova direita tem alguma premissa concreta?
No livro, vou de coisas bem minoritárias a algumas que estão sendo disputadas politicamente, depende dos casos. É um mundo muito heterogêneo. Por um lado, na Europa não há nenhum país que não tenha forças de extrema direita nos parlamentos e no espaço público.
A Espanha, por sua parte, foi um dos últimos a se incorporar com a presença do Vox, a partir de 2018. De qualquer modo, a extrema direita, independente de vencer ou não as eleições, tem um efeito muito forte sobre o discurso político e o debate público.
É o que vimos nas últimas eleições em Madrid, com o Vox, que embora estivesse muito longe de vencer aquela eleição, com sua presença alterou muitas coisas no debate. Ou seja, introduziu uma campanha xenófoba, guinou o discurso muitas vezes à direita e não tirou mais votos porque a candidata do Partido Popular já estava muito posicionada à direita e bloqueou um pouco o seu caminho.
Acredito que nesse mundo coexistem as direitas muito utópicas e possivelmente marginais e outras que têm mais chances de crescer em votos e influenciar no que se discute. Em outras palavras, apontam para a transformação da discussão pública sobre a política.
Em relação à Argentina, considera que os representantes da direita tradicional assumem parte do discurso da nova direita para ganhar votos?
Exatamente. As direitas tradicionais têm o dilema de [medir] o quanto guinar à direita para evitar que surjam forças à sua direita, como o caso do Vox na Espanha, ou aqui na Argentina, Patricia Bullrich, que com um discurso mais à direita freia um pouco isso.
Ou seja, alguém que se sente de direita, em vez de votar em uma força menor como a de [Javier] Milei, prefere votar em Bullrich, e de passagem, em meio à polarização, seu voto vai contra o peronismo, o kirchnerismo, ou seja o que for.
No entanto, para essas forças o risco está em que, se guinam muito à direita, também podem perder o espaço mais moderado de centro-direita que sempre está presente no resto das forças. Ou seja, é um dilema que depende muito dos contextos eleitorais de cada país. Agora, em Madrid, o Partido Popular guinou à direita e venceu com uma maioria importante. Em outro momento, quando guinaram à direita, surgiram forças ao centro.
Com o livro, para além dos resultados eleitorais, tive o interesse em mostrar como conduziam sua batalha cultural em vários níveis. De repente, em certos espaços como a internet, que não olhamos tanto no progressismo, há todo um mundo que está disputando o sentido comum do momento e travando sua batalha cultural antiprogressista.
Como analisa a disputa na sociedade entre a direita mais à direita e a esquerda em nível cultural?
Existe uma ideia de batalha cultural no sentido de que a esquerda venceu mais no campo da cultura que no da economia, ao passo que a direita parecia ter abandonado esse espaço, e então surgem pessoas como Agustín Laje, com muitos seguidores na internet, que se prepara e almeja ser uma espécie de Gramsci de direita, que quer lutar pela hegemonia.
O marxismo cultural é visto como uma espécie de teoria da conspiração, já que, conforme delineado, assume um aspecto real, ou seja, o de que a esquerda se saiu melhor na batalha cultural do que na econômica e possui maior influência nesse setor. O marxismo cultural permite, sobretudo, que voltem a um discurso anticomunista que é muito comum nas novas direitas. Isto é bastante notável porque, após a queda do Muro de Berlim, o discurso anticomunista havia perdido validade simplesmente porque o comunismo havia caído.
Hoje, vemos que retorna em todos os países. Por exemplo, nas últimas eleições em Madrid, Isabel Díaz Ayuso, a candidata do Partido Popular, sintetizou a eleição em termos de comunismo ou liberdade. No Brasil, o anticomunismo foi muito forte no triunfo de Bolsonaro, e aqui mesmo, na Argentina, fala-se em um governo soviético.
Portanto, retorna o discurso anticomunista e acredito que é uma marca muito curiosa da época, porque, em certos momentos, apega-se a esse discurso anticomunista e para isso é preciso construir um mundo bastante imaginário do que é hoje o comunismo.
O marxismo cultural, então, funciona nesses casos como a ideologia de gênero utilizada por essas direitas no debate público. Ou seja, a ideologia de gênero funciona de forma semelhante, ou seja, juntar um montão de autoras e de ideias e chamá-las de “ideologia de gênero”. Isso funciona para travar essa batalha antiprogressista que une pessoas de diferentes direitas, mas cujo inimigo comum e principal é o progressismo.
Em seu livro, cita Ricardo Dudda, que sustenta que a direita é uma forma de inconformismo contra o estabelecido, no sentido de que defendem que tiraram das pessoas a possibilidade de se queixar, rotulando as críticas como racistas, misóginas e homofóbicas. Qual é a sua posição a esse respeito?
O que acontece hoje é que esta moda da direita em se apresentar como politicamente incorreta e reivindicar a incorreção política é uma forma de transmitir uma série de mensagens racistas, homofóbicas às vezes, misóginas, etc., e quando se aponta o conteúdo racista de seu discurso, defendem-se dizendo que é a ditadura do politicamente correto, que não os deixa falar e na qual nada pode ser dito.
Obviamente, existe um debate sobre o politicamente correto, inclusive no progressismo, mas essa forma de incorreção política da direita é outra coisa, que justifica e dá legitimidade a um conjunto de discursos reacionários.
Por exemplo, um dos cartazes de maior sucesso da campanha do Vox em Madrid era contra os imigrantes menores não acompanhados (MENA), um grupo de garotos que reside na Espanha sem os seus pais, e a quem o Vox atacou fortemente, mencionando que enquanto se gasta euros com eles, os aposentados espanhóis não têm dinheiro. Faziam isto por meio de uma foto muito impactante de uma pessoa aposentada ao lado de um desses menores.
De fato, esses discursos estão aí, mas agora é como se o politicamente incorreto justificasse qualquer tipo de discurso, utilizando a “ditadura do politicamente correto” como salvaguarda de sua opinião. Agora, do meu ponto de vista, há coisas que não podem ser ditas, como, por exemplo, um discurso racista em público ou em uma campanha eleitoral.
Na verdade, no progressismo há uma deriva, sobretudo na cultura progressista norte-americana dos campi universitários, que é muito moralista e acusatória, que constrói certos sermões que têm seus problemas. Penso que, às vezes, o progressismo a discute e incorpora, mas seria necessário ver em que medida isso acontece em cada país.
Nos Estados Unidos, por exemplo, isso é um problema, sobretudo nos campi universitários, onde há um grande debate sobre como se constrói a ideia de vítima, como pensar a própria correção política ou a ideia de que certos discursos geram traumas nas próprias vítimas.
É preciso levar em consideração que nos Estados Unidos o discurso está muito atravessado por questões religiosas, com um imaginário muito difuso que vem do protestantismo, da ideia de pensar o racismo como pecado original daquele país.
Segundo Adolph Reed, os progressismos se dedicam a ser testemunhas do sofrimento. No seu ponto de vista, os progressismos estão fracassando em sua condução?
Esse autor é muito crítico sobre como a questão racial é pensada nos Estados Unidos. De fato, há uma crítica, que também está nos movimentos progressistas, sobre como certas opressões e sofrimentos se tornam capital acadêmico. Muitas pessoas, a partir do progressismo, dedicam-se a estudar a questão na academia e a própria ideia de política e de como enfrentá-la politicamente ficam fragilizadas.
Aí, então, constrói-se uma ideia de vítima, e de como preservar essas pessoas, e dos campi como espaço de segurança onde se reduz o que é permitido dizer, etc. Existe uma ideia de proteger certo setor da sociedade em vez de transformar as próprias relações de opressão e mudar aspectos do sistema.
Enzo Traverso também dizia que o auge da memória que vivemos no presente recupera muito mais as vítimas que as lutas, ou seja, recupera-se muito mais as vítimas da escravidão, do machismo, do racismo, do holocausto, mas as lutas menos. É um assunto complexo, em um contexto onde o progressismo parece ter perdido o poder emancipatório ou de transformar a realidade, e muitas vezes o próprio progressismo acaba almejando o passado. Não que o progressismo não ganhe mais eleições, nem tenha mais poder, mas perdeu essa dimensão mais transgressora e revolucionária.
Acredita que a esquerda pode disputar o sentido nas redes sociais ou teria que construir a partir de outra plataforma?
Há algumas esquerdas exitosas nesse campo. Por exemplo, nos Estados Unidos, nos últimos tempos, parece haver uma esquerda muito dinâmica, e isto talvez seja um paradoxo, já que é o único lugar onde há uma social-democracia entusiasta, que também soube usar as redes sociais.
Alexandria Ocasio-Cortez foi muito hábil em se posicionar e travar uma disputa nas redes sociais. Os Estados Unidos são um caso interessante porque é o único país onde existe uma esquerda com certo dinamismo, inclusive entre os jovens.
É verdade que há um tema que se refere ao modo como se posicionar nesse mundo virtual, no qual muitas vezes a trollagem e o anonimato são formas que parecem beneficiar mais a direita.
O segundo ponto importante é como a esquerda, o progressismo, processa o humor, a ironia, e é aí onde o politicamente correto pode ser um limite. Como responder também no plano do humor, utilizando-o como ferramenta para travar uma disputa política cultural mais ampla.
Considera que deveria haver um novo modelo sindical, neste novo panorama mundial?
Em linhas gerais, os sindicatos, em todo o mundo, ficaram um pouco para trás em muitos aspectos, inclusive muitas vezes fora das ondas feministas que estão questionando garantias de gênero na sociedade. Em segundo lugar, em relação ao que alguns chamam de precariado, como forma de denominar o novo proletariado, uma forma de trabalho que está longe das formas de trabalho que conhecíamos.
Hoje, os sindicatos não representam esse precariado, então, possivelmente é preciso uma ampliação do que se entendia por representação sindical, por ativismo sindical, se é que os sindicatos querem continuar travando uma batalha para além da representação corporativa de certos setores.
Em alguns casos, podem continuar sendo fortes porque são importantes na economia, ao passo que em outros casos vão se fragilizando, e cada vez menos pessoas pensam em se filiar a um sindicato para defender seus direitos trabalhistas e sociais.
Em seu livro, aparece a frase: “a direita é punk e a esquerda é puritana”. Qual é o conteúdo da rebeldia da direita?
Acredito que, de fato, há um problema de conteúdo. Um filósofo francês mencionava que há um hipercriticismo sem a ideia de emancipação. Muitas vezes, a crítica social tinha horizontes emancipatórios, que podiam ser socialistas, liberais em diferentes aspectos, mas hoje há um hipercriticismo nas redes sociais, ou seja, todo mundo critica o sistema, os políticos, etc. Tudo está muito dissociado de uma ideia de uma sociedade melhor.
Penso que muitas dessas direitas capturam essas iras, insatisfações, medos do futuro, a ideia de que os imigrantes vão substituir você, que a tecnologia nos deixará sem trabalho, etc. Ou seja, há uma ideia de futuro muito negativa e é muito difícil para o progressismo, inclusive para o liberalismo democrático, travarem uma batalha política quando a ideia de futuro para uma grande parte da sociedade é muito negativa e muitas vezes distópica.
Na Europa, as extremas direitas são mais estáveis e obviamente também vão mudando seus programas em relação às chances que possuem para chegar ao poder. Quanto mais se aproximam da chegada ao poder, mais vão deixando de lado algumas bandeiras. Vê-se na extrema direita que propunha sair da Europa e, hoje, muitos partidos já não propõem isso. Então, em muitos casos, essas extremas direitas vão se tornando mais pragmáticas.
Há de tudo, desde partidos que formam partidos, até formas como no caso argentino, onde ainda não está claro se todo este movimento libertário irá se diluir e será simplesmente algo temporário ou conseguirá um pequeno chão de votos e irá se estabilizar um pouco como algo à direita do PRO. É algo que não está claro, nem é fácil para eles também, e isto é algo novo na Argentina, onde houve direitas que se apresentavam de modo mais moderado no debate público.
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“A direita está travando sua batalha cultural antiprogressista”. Entrevista com Pablo Stefanoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU